Sorria, você está sendo amado (ou vigiado)
Amor no século da notificação: entre a vigilância disfarçada de cuidado e o medo do modo avião alheio.
Tem dias, como hoje, em que me pego parado, observando quem amo e me pergunto se ele teria consciência das sutilezas que percebo em cada gesto. As pequenas pausas antes de responder, como se a mente se perdesse em pensamentos que nem sempre chegam ao discurso. As dobras no jeito de sentar, os ombros que tensionam por um segundo antes de relaxar. O suspiro que não é exatamente sinal de cansaço ou talvez seja, não sei dizer. O modo quase imperceptível como a boca se fecha, franzindo-se, quando algo o contraria. E os olhos que, às vezes, parecem vasculhar algo que as palavras não alcançam, tentam ler e captar o que escapa do ouvido. Fico aqui, em silêncio, imaginando: enquanto eu o olho tão atentamente, será que ele também me vê?
Aí me pergunto: o que há em mim que ele capta, mas que eu mesmo não consigo enxergar? E o que há nele que toca em mim de uma forma que nem ele imagina? Talvez amar seja mesmo esse risco permanente: querer nomear o que escapa ao nome, buscar certeza onde só há mistério. E, ainda assim, ouso dizer que amar é habitar esse pêndulo delicado entre vigiar com ternura e desejar, com todas as forças, ser visto sem máscara, sem receio.
E pergunto a nós todos, amamos mais quando enxergamos o outro ou quando nos deixamos ser enxergados por ele? Amar seria apenas olhar e ser olhado, e mesmo assim nunca decifrar, por completo, quem é o outro? Quem somos nós, quando percebemos o próprio olhar refletido no olhar de quem amamos? Quem somos nós diante do olho do outro? E diante de sua câmera? Seu celular? Seus emojis?
The Code, 1,2,3 gravando…
Quando comecei a assistir The Code (ou O Código), filme de 2024, logo entendi que aquele filme não era somente sobre um casal à beira do colapso. Era sobre mim. Sobre nós. Sobre o modo como, hoje, nos relacionamos, performamos a intimidade e negociamos o amor no mundo digital. A sensação era a de encarar um espelho desconfortável, que ora me fazia rir, ora me provocava uma vontade quase visceral de desviar o olhar.
A premissa, em si, parece simples: no início da pandemia da Covid, Céline e Jay um casal de criadores de conteúdo (ela cineasta e ele editor de vídeos ou algo assim) decidem se isolar numa casa alugada distante de tudo. Céline e sua câmera, inquieta com a urgência histórica daquele momento, resolve registrar, em documentário, como a pandemia remodela vidas, as máscaras, as mudanças de hábitos, afetos e desejos. Porém, aos poucos, o foco que era externo vai se deslocando: o real objeto de registro acaba sendo o próprio relacionamento, com seus micro conflitos, tensões e feridas que o isolamento escancarou.
E então surge Jay, que diante da insistência da namorada nas filmagens em diversas situações e provocações, passa a desconfiar que Céline planeja registrar em vídeo para posteriormente cancelar o namorado na internet por sua conduta e falas, o medo de ser cancelado digitalmente. A sombra desse cancelamento não é só social, é psicológica, íntima, corrosiva. O medo de nova exposição, de ser mal interpretado, de ser massacrado em pleno tribunal digital, o leva a uma decisão que, à primeira vista, parece absurda mas, vista de perto, carrega ecos perturbadores do nosso tempo: Jay começa a instalar câmeras secretas pela casa e ativa aplicativos espiões no celular de Céline (ambos tinham aplicativos espiões, melhor do que um casal conversar sobre os problemas, é instalar aplicativos espiões). Uma tentativa desesperada de controlar a narrativa. De vigiar antes de ser vigiado. Antecipar.
A partir daí, o filme mergulha numa lógica de vigilância levada ao extremo e, ao mesmo tempo, tão familiar para quem já stalkeou alguém, conferiu o “visto” no WhatsApp, salvou prints “por precaução”.
Uma das cenas mais desconcertantes de The Code é um soco no estômago: Jay e Céline, vivendo sob o mesmo teto, escolhem fazer amor por videochamada. Cada um em um cômodo, separados por paredes finas, conectados por uma tela fria. O corpo de um não encontra o do outro. Jay hesita, tropeça na própria carne, não chega lá. A solução? O virtual. A câmera ligada, o desejo mediado por pixels, o toque substituído por uma imagem que pisca.
Não é só uma cena, é um espelho. O sexo, esse espaço onde a presença sempre foi rainha, a pele na pele, respiração no pescoço, o peso do outro contra o seu, vira performance (mas agora digital). A carne se dissolve em bits, o calor do encontro vira luz de tela. E a gente se reconhece nisso, não é? Quem nunca trocou um abraço por uma mensagem, um olhar por um emoji, um toque por um “visto”? Antes a distância entre dois corpos poderiam justificar, mas e agora? Quando o casal escolhe ficar longe?
O que The Code escancara é cruel: o digital não só facilita, ele sequestra. Transforma o amor em algo que se transmite, que se performa, que se controla à distância. Mas o que sobra quando a presença vira uma chamada de vídeo? Quando o desejo precisa de wi-fi pra existir? E se o sinal cair, deixo de amar? Existe amor no offline e modo avião? Será que sobreviveríamos ao cabo desconectado do outro?
É trágico, mas é também revelador. Porque, no fundo, o amor não cabe na tela. Ele vaza, escapa, pede corpo. E talvez seja essa a nossa maior ferida: querer tanto estar perto e, mesmo assim, escolher a distância de um clique. Ainda bem que o amor, teimoso, insiste em ser maior que o sinal de internet.
E essa lógica de câmera invade toda a convivência deles. Jantares deixam de ser meras refeições e viram encenações conscientes para registro audiovisual. Conversas cotidianas soam roteirizadas. O documentário idealizado por Céline passa a ser um reality-show involuntário, uma exposição sem consentimento, sobre a falência da intimidade ou, quem sabe, sua transformação em espetáculo. A montagem do filme dialoga com isso: cenas costuradas por celulares, câmeras de segurança, chamadas de vídeo e apps espiões, inclusive cenas do tiktok onde ela mostra para se tornar viral instalando aplicativos no celular de Jay. A pergunta que assalta o espectador, o tempo inteiro, não é apenas “o que está acontecendo?”, mas “quem olha quem?”. As fronteiras entre quem grava e quem é gravado, quem comanda e quem se submete, dissolvem-se até virar um borrão indistinto.
No fim, The Code não é só a história de um casal isolado tentando sobreviver à pandemia. É um espelho de como internalizamos dispositivos de vigilância, a lógica do controle, da exposição constante, e de como nossos afetos, o amor, o desejo, o ciúme, o medo de abandono, o pavor de ser cancelado, estão atravessados, tensionados e, muitas vezes, deformados por esse contexto. Pergunto a mim mesmo: ao rir do absurdo desse casal, não estarei rindo de mim? Das vezes em que senti a necessidade de saber onde o outro estava, do impulso quase incontrolável de conferir, checar, garantir?
O filme escancara que, no amor contemporâneo, desejo e vigilância andam de mãos dadas. O desejo de ser amado caminha ao lado do desejo de ser visto e, paradoxalmente, do medo de ser visto demais, que o outro nos veja mas ainda assim que permita segredos. Ou um espaço seguro para ter algo de mim que seja só meu.
As feridas contemporâneas do amor
Amar hoje é como tentar segurar água com as mãos. Você sente o toque, mas ela escorre, escapa, e você fica com os dedos úmidos e um vazio que não explica. Há algo profundamente incômodo em amar agora. Não é o amor que machuca, mas o que fazemos dele: a mania de querer torná-lo uma certeza, um contrato, uma notificação lida.
O amor moderno é viciado em sinais. A ansiedade não vem mais da ausência, das cartas que demoravam meses para chegar, ou das viagens de navio ou trem até ver quem se ama, mas agora vem da presença que não se completa: o “visualizado às 15h23” sem resposta, o “digitando…” que morre em reticências, o story assistido que não rende nem um “oi”. A bolinha verde no WhatsApp vira um oráculo, e a gente se pega decifrando o que não foi dito, como se um like pudesse ser um tratado de amor, como se tivesse algo para além daquilo que é, como se pudesse ser mais.
A gente ama no refresh da tela, dando F5 na vida. No feed, no status, no “visto por último”. A espera não é mais pelo toque, pelo cheiro, pelo encontro. É por um sinal qualquer, um emoji de fogo, uma curtida, uma mensagem que apague, por um segundo, o vazio que a tela amplifica.
E aí vem a vigilância, que a gente disfarça de cuidado. O controle, que a gente chama de zelo. Quantas vezes você já checou se alguém estava online, só para sentir um aperto no peito? Quantas vezes confundiu saber tudo sobre o outro com amar o outro? Byung-Chul Han já dizia:
“A transparência não é um meio de amor. O amor só pode florescer na ocultação.”
Tentar ver tudo, saber tudo, capturar tudo é como acender todas as luzes de uma sala e esperar que a magia sobreviva, que seja possível ver um simples vagalume contra um holofote. O desejo precisa de sombra, de mistério, de um espaço onde o outro possa ser um pouco desconhecido. Porque, no fundo, é esse não saber que faz o coração acelerar.
Mas a hiperconexão promete o contrário: um outro legível, disponível, previsível. Parece segurança, mas é cilada. Porque o que se controla demais, se sufoca. E o que se sufoca, morre. Será que a gente protege o amor quando quer saber cada passo do outro? Ou será que, ao monitorar, a gente destrói o que ele tem de mais vivo?
Talvez amar hoje seja aprender a conviver com o vazio. Aceitar que o outro tem um pedaço que nunca vai ser nosso, e que é exatamente nesse buraco, nesse mistério, que o amor respira.
Intimidade sufocante
E se a gente estiver perto demais? E se estiver longe demais? Amar hoje é dançar num fio de navalha, entre o medo de se perder no outro e o pavor de perder o outro. Como aponta Zygmunt Bauman:
“O amor é uma hipoteca contratada sobre uma propriedade incerta e enigmática.”
Queremos a segurança de saber que o outro é nosso, mas também a liberdade de não sermos de ninguém. Queremos o colo, mas sem a corda. O abraço, mas sem o peso. É uma dança torta, onde cada passo pode parecer um erro, um desamor. Queremos amor, mas não queremos a fadiga, nem o esforço.
E de quem é o medo, afinal? Do outro, que pode ir embora? Ou nosso, de não saber se aguentamos ficar? A hiperconexão nos conecta, mas também nos deixa sozinhos. Estamos todos juntos no mesmo aplicativo, mas cada um na sua ilha, esperando uma notificação que nos salve do silêncio, ou um barco a deriva com algum estranho disposto a desbravar terras desconhecidas.
O paradoxo da presença
Estar junto machuca. Estar só, também. E é nesse lugar sem saída, nesse nó que aperta o peito, que o amor acontece. Roland Barthes escreve:
“O amante, na verdade, não pode deixar de tocar no corpo do outro, com a mão, com os olhos, com tudo o que tem, mas esse corpo amado sempre me escapa.”
É lindo e é cruel. Porque amar é tentar segurar o que nunca se deixa agarrar. É querer o outro inteiro, sabendo que ele nunca será completamente nosso. É olhar para quem está ao seu lado, na cama, na mesa, na vida, e perceber que, mesmo tão perto, ele é um enigma, e que num dia qualquer ele pode resolver ir embora, e tudo bem.
E talvez seja isso que faz o amor valer a pena: não a certeza, mas a coragem de mergulhar no mistério. De amar mesmo sabendo que o outro sempre vai escapar um pouco. Que o amor, no fundo, é aprender a dançar com o que não se explica.
A ilusão do controle
No filme The Code, Jay espiona. Instala câmeras escondidas, ativa rastreadores, fuça mensagens. Ele quer saber tudo: onde ela está, com quem fala, o que sente. E, ainda assim, não sabe. Não alcança. Não decifra. O coração do outro permanece trancado, e nenhuma senha, nenhum print, nenhuma localização compartilhada consegue abrir essa porta.
Você já tentou isso, não é? Já checou um “visto por último” achando que ali, naquele horário, estava a resposta. Já vasculhou um perfil, um story, um histórico de busca, como se a verdade do outro pudesse ser capturada em pixels. Mas o amor não cabe em evidências. Não se deixa reduzir a notificações ou capturas de tela.
The Code nos pega no estômago porque escancara o que a gente teima em ignorar: o outro é um mistério. E o amor, esse bicho esquivo, vive justamente nesse espaço que não controlamos. Câmeras, senhas, rastreadores nada disso atravessa o abismo entre você e quem você ama.
E que sorte, não é? Que desespero, também. Porque amar é querer segurar o que sempre escapa, e ainda assim insistir. É perceber que o outro é um território desconhecido e, mesmo assim, escolher caminhar por ele. Sem mapa, sem GPS, sem garantias. Ainda bem que é assim. Porque é nesse não saber que o amor respira, cresce, vive.
O manual do amor nas redes sociais
E, em meio a esse cenário de espelhos e câmeras, as redes sociais pipocam com modelos prontos de como ter um relacionamento feliz: “10 sinais de que ele é o cara certo”, “as 7 red flags que indicam um relacionamento tóxico”, “10 perguntas essenciais para descobrir se você encontrou sua alma gêmea”. Tudo vem com manual, checklist, instruções como se o amor se resumisse a uma receita de bolo. A conta do Instagram que promete relacionamentos “à prova de crise”, o perfil do TikTok que ensina “como conquistar e manter a atenção dele em 5 passos”. Às vezes parece que, se você não riscar todas as caixinhas, há algo de errado contigo ou com quem você escolheu amar. Se ele gostar de colocar feijão em cima do arroz, corra para as montanhas! Ketchup na pizza? Já chega, fuja enquanto há tempo! Ele não é o cara para você!
Isso me assusta: como se fosse errado sentir insegurança algum dia, ou ter medo em algum momento. Como se o outro tivesse a função plena de garantir nossa máxima felicidade. Se ele não nos manda emoji de coração na hora certa, se não posta foto de casal toda semana, se não manda mensagem para “conferir” em um horário específico, está tudo perdido. Até onde esse manual nos ajuda ou nos atrapalha? Ao criar expectativas rígidas, às vezes esquecemos que amar é aceitar a imprevisibilidade, os desencontros e as dúvidas como parte da vivência, e pior do que engessar algo que deveria ser orgânico e construído, passamos a deixar de tentar, pois veja bem, se a lista de tiktok me disse que tem algo errado então é preferível que eu desista, entre tantas pessoas, deve ter alguém que cumpra todos esses requisitos (spoiler: não tem, nem eu e nem você cumpre, e tudo bem). O manual promete segurança, mas ignora o mistério. Ensina a verificar a lista de “sinais” e “red flags”, mas não ensina a lidar com o susto de quem, em alguma tarde, acorda e se pergunta se aquela pessoa que amamos, de fato, vai ficar.
Talvez eu precise abrir meu coração pra você:
É difícil admitir, mas às vezes tenho medo, entende? Medo de perder, de não ser escolhido, de não ser suficiente. E, no meio desse medo, nasce uma vontade quase desesperada que nem sei se chamo de amor ou de desespero. Uma vontade de olhar tudo, saber tudo, decifrar cada gesto, cada pausa, cada silêncio. Como se olhar demais pudesse funcionar como proteção. Como se vigiar fosse uma forma de segurar o outro pela mão, mesmo sem pedir permissão.
Às vezes me pego ali, sovando o “visto por último”, observando o story que ele viu, remexendo notificações que não chegaram, tentando dar nome ao sumiço que me atormenta. E fico cavando códigos que talvez não existam. Porque o amor, quando cruza o medo, transforma-se num campo de batalha silencioso uma arqueologia do afeto, sempre procurando nas entrelinhas, sinais de que ainda sou amado, e isso é normal, tem dias que acordamos assim, outros abrimos os olhos tendo a certeza de que somos amados, seguros de si, escolhidos, suficientes. O medo faz parte, é natural, não deve ser tratado com pudor.
Olho para as redes e vejo essa enxurrada de “dicas infalíveis” que prometem a relação perfeita. E me pergunto: quando foi que amar virou essa necessidade de confirmação? Quando foi que a presença se confundiu com estar sob vigilância? Quando as dúvidas se tornaram tabu, como se fosse errado chorar de insegurança, como se não pudéssemos sentir medo de verdade? Passamos a acreditar que o outro tem a obrigação de preencher nosso vazio, assegurar nossa felicidade diária, comprovar o amor a cada notificação.
Mas, sabe, me pergunto se não é exatamente aí que tudo começa a desandar. Porque, por mais tentador que seja seguir um manual, amar não se reduz a etapas. Talvez amar seja justamente o oposto disso. Talvez amar seja aceitar que não vou saber tudo. Que não existe câmera, senha ou checklist capaz de proteger do fato de que o outro é um universo inteiro que não controlo. E é tão bom (e ao mesmo tempo tão assustador) constatar isso.
Talvez amar seja, no fim das contas, aprender a não saber. A não precisar. A não vigiar. A confiar no invisível, no que não se prova, no que não se vê. E talvez, quem sabe , a parte mais difícil do amor seja, exatamente, isso: aceitar e sustentar o risco.
E volto àquela pergunta que não me deixa desde que tudo começou a fazer sentido: afinal, amar é vigiar? É ser visto? É buscar confirmações, monitorar, escanear? Ou amar, de verdade, é fechar os olhos e pular no escuro (mas sabendo onde está o interruptor)? Confiar, ainda que trepidante, que o amor não precisa de câmeras, nem de senhas, nem de roteiros, nem de prova para existir?
Eu não sei. Mas talvez seja nessa pergunta e não na resposta que o amor acontece.
E você já se fez essa pergunta?
Me conta nos comentários!
Agradeço por trazer essa versão do amor contemporâneo pois já algum tempo " sozinha" após o divórcio e um reencontro de um amor jovem. Meu coração disparou ao tentar imaginar as cenas desse filme, e também sobre o filme real que colocou como amor contemporâneo. Mas compartilho contigo um desabafo: após quase 30 anos em um relacionamento tóxico, abusivo e violento me vi reconstruindo meus valores e a forma de me amar antes de mais nada. Acredito no amor, vivo o amor e ainda espero por um amor verdadeiro de almas. De um parceiro que também esteja inteiro como eu.
Nossa, que baita texto!