Os peixinhos que não salvamos
O cansaço de amar, o silêncio de quem espera e a ternura que resiste mesmo depois do fracasso.
"Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu."
Clarice Lispector escreveu essa frase em 1968, num livro que parecia infantil mas era devastadoramente adulto. Ela havia esquecido de alimentar dois peixinhos vermelhos do filho por três dias. Quando percebeu, era tarde demais. Eles estavam mortos, magros, parados no aquário como pequenos fracassos domésticos.
Na confissão que se segue, ela tenta se explicar com uma honestidade brutal: "Não é que eu não seja de confiança. Mas é que sou muito ocupada, porque também escrevo histórias para gente grande. E assim como a mãe ou a empregada esquecem uma panela no fogo, e quando vão ver já se queimou toda a comida – eu estava também ocupada escrevendo história. E simplesmente fiz uma coisa parecida como deixar a comida queimar no fogo: esqueci três dias de dar comida aos peixes! Logo aqueles que eram tão comilões, coitados."
A comparação é devastadora: esquecer de cuidar de quem amamos é como deixar a comida queimar no fogo. Acontece não por maldade, mas por distração. Por estarmos ocupados demais com nossas próprias histórias.
E então ela fez algo que poucos têm coragem: escreveu um livro inteiro pedindo perdão.
Quando li isso pela primeira vez, eu era pequeno demais para entender a brutalidade simples daquelas palavras. Parecia só uma história melancólica de uma escritora distraída. Mas quando reli, já adulto, com o corpo pesado de tantas ausências que eu mesmo tinha causado, entendi tudo.
Porque eu também matava meus peixes.
A geografia da primeira culpa
A primeira vez que experimentei a culpa foi com uma planta. Eu tinha oito anos, e minha mãe havia me deixado responsável por regar. Era só isso. Um copinho d'água por dia. Mas esqueci. Por dias. Talvez uma semana inteira.
Quando me dei conta, a planta já estava murcha, as folhas encolhidas como mãos que pediam perdão antes de morrer. Toquei a terra, seca, rachada, fria. O vaso tinha virado um pequeno deserto na cozinha da nossa casa.
Naquela manhã, com os dedos sujos de terra morta, eu não chorei pela planta. Eu chorei por mim. Pelo fracasso de não ter dado conta de algo tão simples. E porque eu já sabia, no meu corpo pequeno, que esquecer podia machucar.
Minha mãe não me abraçou. Nem perdeu tempo com consolo.
Me olhou de cima, com a boca reta e os olhos duros.
E disse, como quem dá um veredito, não um conselho:
“A vida não vai te esperar. Aprenda a perder.”
Ainda sinto o gosto metálico daquela frase na língua.
Às vezes, a gente não mata o amor por desinteresse. A gente mata por distração. E dói do mesmo jeito.
O que é care guilt? Um nome novo para dores antigas
Existe um termo para isso: care guilt. A culpa que sentimos por não cuidar o suficiente. Uma culpa mansa, quase silenciosa, mas que volta quando a gente vê uma foto antiga, um nome no celular, um aquário vazio no coração.
“Tudo o que estabiliza a vida humana demanda dedicação de tempo prolongada.”
— Byung-Chul Han
É uma culpa relacional, sim, mas também profundamente sistêmica. Porque ninguém esquece porque quer. Esquecemos porque estamos sobrecarregados. Vivemos numa era em que a exaustão vem da pressão para sermos produtivos e disponíveis o tempo inteiro. E nessa lógica, o cuidado, que exige pausa, atenção, escuta, se torna artigo de luxo.
Clarice já sabia disso, muito antes de termos uma palavra para nomear. Ela conta, por exemplo, sobre uma moça que ganhou um periquito australiano de presente: "Conheço uma moça que toca piano muito bem nos teatros. Essa moça ganhou de presente no dia do seu aniversário um periquito australiano. Só ganhou a fêmea. O pior é que as pessoas que dão um periquito australiano têm que comprar dois: um macho e uma fêmea que, por causa da raça deles, são tão amorosos que passam o dia se beijando e não podem ser separados. A periquita até adoeceu de tanta saudade do macho dela."
A história da periquita que adoeceu de saudade é uma das reflexões mais profundas sobre o amor incompleto. Sobre como alguns seres, bichos, gente, não conseguem viver pela metade. Precisam do par, da completude, da presença do outro para não adoecer. E sobre como, às vezes, quem oferece cuidado não entende completamente o que o outro precisa para sobreviver.
É essa a natureza do care guilt: a percepção dolorosa de que nosso amor, mesmo quando máximo e genuíno, pode ser insuficiente. Não por falta de afeto, mas por falta de compreensão, de tempo, de presença integral.
Eu já esqueci também. Já deixei peixinhos morrerem. Já deixei amizades se esgotarem por falta de presença. Já estive em situações que eu amava, mas mesmo assim fui me ausentando sem perceber. Porque eu estava cansado. Porque o mundo cobrava tudo de mim. Porque cuidar de alguém exige tempo, e o tempo está nos matando, e nunca sobra tempo para nada.
Lembro de uma tarde em que meu sobrinho queria, mais do que tudo, brincar de pega-pega comigo. Era a terceira vez naquela semana que eu prometia e não cumpria. Tinha me esquecido de novo. E ele, tão pequeno, tão inteiro nas coisas, me olhou com aqueles olhos que ainda não aprenderam a mentir, que ainda não sabem esconder a dor. Olhos de quem sente e diz.
E disse.
Com a voz embargada de uma tristeza recém-nascida, ele soltou:
“Você nunca brinca comigo.”
Naquele instante, o mundo parou. Não como nos filmes, mas do jeito que só a culpa sabe parar o tempo: afundando tudo em silêncio. Doeu. Não porque ele falou alto. Mas porque falou a verdade.
Quando a alma entra em modo avião
Tem dias em que minha alma entra em modo avião. Fico olhando as mensagens no celular como quem olha um lago congelado. Eu quero atravessar. Eu juro que quero. Mas não tenho pé, não tenho fôlego, não tenho corpo para isso.
As notificações se acumulam. Os "como você está?" ficam sem resposta. O silêncio vira um peso no peito.
"Desculpa não ter respondido antes", eu digo quando finalmente consigo voltar. Mas o que eu queria dizer mesmo é: "Desculpa por estar esgotado demais para amar. Desculpa por não ter conseguido ser presença quando você precisava."
O amor também cansa. E ninguém fala sobre isso. A gente romantiza o cuidado, como se ele fosse uma fonte inesgotável dentro de nós. Mas não é. Às vezes ele seca. Às vezes ele some. Às vezes ele precisa de cuidado também. Como alguns filósofos nomeiam, estamos na sociedade do cansaço, estamos cansados e nos culpamos por isso.
O amor não morre só quando falta. Às vezes ele morre de exaustão. De cansaço. De não ter onde pousar.
O silêncio dos peixinhos, e dos que esperam
Uma das passagens mais devastadoras do conto de Clarice é quando ela compara os peixes a seres que não têm voz:
"Peixe é tão mudo como uma árvore e não tinha voz para reclamar e me chamar."
Aqui, Clarice escancara o abismo entre quem precisa de cuidado e quem está cansado demais para perceber. O peixe vira metáfora de todas as pessoas que esperam, em silêncio, um gesto mínimo de afeto.
Já fui deixado também. Ficamos assim, dois peixes boiando em aquários diferentes, cada um esperando ser lembrado. Cada um achando que o outro havia desistido primeiro. Com fome, de si e do outro.
Teve uma amizade que morreu assim. Lentamente. Sem briga, sem discussão, sem lágrimas dramáticas. Só o esquecimento fazendo o trabalho sujo. Ela me mandava mensagens que eu lia e pensava: "Vou responder depois." Depois virava semana. Semana virava mês. Mês virava constrangimento. Até que ela parou de mandar. E eu fiquei pequeno demais para tentar corrigir o problema.
Tem gente morrendo em silêncio por aí, e ninguém nota. Tem pessoas vivendo com um aquário vazio dentro do peito. Elas não pedem ajuda. Elas só esperam. E um dia, param de esperar. Um dia, boiam.
O abandono nem sempre grita. Às vezes, ele só boia, devagar, num afeto que ninguém olhou.
O educador que também falha
Na sala de aula, tento ser abrigo. Mas tem dias em que meu corpo não me acompanha. Tem dias em que o cansaço pesa mais que a vocação.
Já olhei para um aluno calado no fundo da sala e soube: "Eu devia ter notado antes. Eu devia ter perguntado. Eu devia ter sido ponte." Mas estava exausto. Estava falhando até comigo mesmo.
A criança percebe quando você não está inteiro. Criança percebe tudo. Elas têm um radar para ausência emocional que a gente perde quando cresce.
Teve um menino, uma vez, que desenhou nossa turma inteira numa folha de papel. Todos os coleguinhas estavam lá, coloridos, sorridentes. Eu também estava, mas era só um boneco de palito, sem cor, sem expressão. Quando perguntei por que tinha me desenhado assim, ele disse, com a honestidade brutal das crianças: "Porque você parece triste."
Aquilo me quebrou e me curou ao mesmo tempo.
A gente quer ser colo, mas às vezes só consegue ser cadeira vazia. E as crianças percebem. Porque criança percebe tudo.
A ambiguidade do amor imperfeito
Nem sempre conseguimos ser quem gostaríamos de ser para as pessoas que amamos. E isso não significa que amamos menos. Significa apenas que somos humanos. Eu, por exemplo, amo. Amo com tudo o que posso, com tudo o que sei. Mas às vezes, mesmo amando, sou engolido pela rotina, tomado pelo cansaço, atropelado pelas demandas que a vida vai impondo sem pedir licença. Tem dias em que acordo já devendo horas, correndo atrás de um tempo que não chega, e quando vejo, já é noite, e o relógio não me deixou nem um espacinho pra sentar com calma, pra ouvir com atenção, pra oferecer carinho com presença. Quando percebo, não sobraram ponteiros pra dedicar afeto. E não porque eu não quis. Mas porque, naquele dia, simplesmente não consegui.
E isso não diminui o amor. Não apaga o que eu sinto. Só mostra que, às vezes, o corpo não acompanha a intenção, que o mundo lá fora nos exige mais do que conseguimos dar, e acabamos dando menos do que gostaríamos a quem mais importa. E nesses dias, tudo o que resta é o gesto humilde de olhar nos olhos e dizer: “Hoje eu não consegui dar conta. Você me perdoa?” Porque amar também é isso: reconhecer os limites, admitir as ausências, reaprender a voltar. Amar é saber que nem sempre seremos perfeitos, mas podemos ser honestos. E talvez, só talvez, essa honestidade seja também uma forma de cuidado.
Teve uma época em que minha mãe estava doente e eu morava longe. Ela não me cobrava nada, nunca disse que sentia minha falta. Mas eu sabia. Eu sentia na voz dela ao telefone e nas mensagens, naquele "está tudo bem" dito rápido demais, como quem tem medo de pedir o que precisa.
Eu devia ter ido mais. Devia ter ligado mais. Devia ter sido mais presente. Mas estava me afogando na minha própria vida, tentando dar conta dos meus próprios peixes.
E a culpa veio depois. Quando ela melhorou, quando o susto passou, quando já era tarde demais para voltar atrás e cuidar melhor, ainda que agora ela esteja bem.
Mas talvez essa seja a natureza do amor: imperfeita, cheia de lacunas, feita de acertos e fracassos em proporções que a gente nunca consegue calcular direito.
O amor não é um exame que você passa ou reprova. É uma conversa que nunca termina, cheia de vírgulas, reticências, e pontos de interrogação. Às vezes, ele fica mudo por dias. Outras, grita no meio da sala por coisas pequenas.
Tem dias em que ele responde rápido, com sorriso nos olhos. E tem outros em que demora a entender, a escutar, a voltar. O amor é feito mais de tentativa do que de certeza. Mais de escuta do que de resposta. Mais de presença do que de acerto.
E o que sustenta essa conversa não é ter razão, nem ser sempre o melhor, nem saber o que dizer.
É continuar sentando na beira da cama, mesmo quando tudo parece desalinhado,
e perguntar com verdade: “Você ainda quer tentar?”
A samambaia que me ensinou sobre renascimento
Teve uma samambaia que morreu na minha sala. Não reguei por semanas, repeti aquele velho erro da infância. Quando percebi, era tarde demais. As folhas, antes verdes e cheias de vida, agora estavam cinza, secas, caídas no chão como lágrimas vegetais.
Ficamos nos olhando: eu e a planta morta. Como dois sobreviventes de um naufrágio que não se falaram a tempo. Pensei em jogar fora. Mas deixei o vaso ali. Mesmo morto. Como lembrete. Como pedido de desculpa. Como promessa de que tentaria fazer diferente da próxima vez.
Três meses depois, vi um broto verde nascendo no meio da terra seca. Pequeno. Tímido. Mas vivo. Foi quando entendi que algumas coisas morrem para renascer. Que o perdão às vezes demora, mas chega. Que nem toda ausência é abandono definitivo.
Que ainda pode dar tempo.
Tem planta que ressuscita com um pouco d'água e paciência. Tem afeto que volta com um toque. Tem amor que renasce só de ser olhado de novo.
"Vocês me perdoam?" (a pergunta que fica)
No fim do livro, Clarice pergunta às crianças: "Vocês me perdoam?"
Ela não impõe. Ela não explica demais. Ela apenas pede. E esse pedido ecoa em cada adulto que carrega a memória de uma ausência: o amigo que não foi visitado, o amor que foi murchando, a planta que secou, os peixinhos que morreram.
Essa pergunta final é também um convite ao outro. A quem lê. A quem espera. A quem cuida. A quem esquece.
E talvez seja isso que a gente mais precise hoje: de menos performance, menos acerto, e mais espaço para recomeçar.
Todos nós já esquecemos de alimentar algo. Um peixe. Um filho. Um sonho. Um amor. Um pedaço de nós mesmos. Já fomos o professor distraído. A filha ausente. O amigo que não liga. A pessoa que promete e não cumpre. O cuidador que não tem mais forças para cuidar.
Mas a falha não anula o afeto. O cansaço não apaga o cuidado. O esquecimento não mata o amor, só o machuca.
O cuidado é imperfeito, mas é o que temos de mais humano.
Talvez ainda dê tempo
Se você já deixou um peixinho morrer, eu te entendo. Se você é o peixinho, eu te vejo. No fundo, a gente está todo mundo tentando. Tentando cuidar. Tentando não sumir. Tentando lembrar de alimentar o que importa.
Nem todos os peixinhos vão sobreviver. A vida não nos salva de todas as culpas. Nem deveria. Porque é da culpa que nasce a consciência. É da falta que nasce o desejo de fazer melhor.
Mas talvez ainda dê tempo de alimentar o que resta. De cuidar do que sobreviveu à nossa ausência. De regar, ainda que tarde. De telefonar, ainda que constrangido. De pedir desculpa, ainda que o orgulho pese.
Talvez não seja tarde. Talvez ainda tenha água. Talvez ainda dê tempo.
Talvez ainda dê tempo de aprender que cuidar de si não é egoísmo, é pré-requisito para cuidar dos outros. Que amar inclui falhar. Que ser humano é aceitar que nem sempre damos conta. E que tudo bem.
A gente não vai salvar todos os peixinhos. Mas pode, ao menos, reaprender a olhar para eles. Podemos trocar a água, dar comida, até conversar, e isso já é um ótimo começo.
A conversa que continua
Você também matou algum peixinho? Deixou alguma planta secar? Esqueceu de ligar quando deveria? Sumiu quando alguém precisava?
Talvez nem tenha sido por mal. Talvez tenha sido só... porque você também precisava de cuidado. Porque você também estava se afogando. Porque você também é só uma pessoa tentando dar conta de mais do que consegue carregar. E talvez seja hora de se perdoar. Não para esquecer. Não para repetir. Mas para aprender que a culpa pode ser professora, não algoz. Que o erro pode ser ponte, não abismo.
Conta para mim: o que você gostaria de ter cuidado melhor? O que você deixou morrer que ainda dói? E o que, mesmo sem ter dado conta, ainda pulsa aí dentro, pedindo uma segunda chance?
Porque talvez seja disso que a vida é feita: de segundas chances. De plantas que renascem. De peixes que, mesmo mortos, nos ensinam algo sobre o amor. A vida é uma arte de cuidar, do que se ama, do que se perde, do que ainda pinga esperança. E todos nós estamos aprendendo, um erro de cada vez.
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Tenho uma orquídea que está comigo há 1 ano. No início, quando comprei, ela estava toda florida e elegante —como as orquídeas sempre são quando compramos — mas depois eu já não sei mais o que aconteceu… não sei aonde desandou. A minha orquídea não floresce mais. O que era verde antes, hoje está marrom, craquelado e sem vida. Mas não acho que foi culpa do esquecimento, Bordas, e sim do excesso do meu cuidado. Fiquei tão desesperada em a manter viva, bonita e saudável, que acabei cuidado demais. Eu procurava pela melhor posição do sol, pela quantidade ideal de água, por adubos apropriados, sérum para as folhas (exatamente isso, rs)… e no fim, o que me restou aqui foi um vaso azul bem bonito e uns galhos amarronzados. Foi duro reconhecer esse fracasso, sabe? Assumir que o que sufocou minha orquídea foi o meu pavor de não conseguir cuidar, de não conseguir fazer dar certo. Por um tempo, mesmo tendo somente alguns galhos secos, continuei com o mesmo ritual: era como continuar a alimentar os peixes mesmos depois de estarem boiando no aquário.
As vezes quero ter uma reação melhor pra acompanhar o tanto que sua escrita me enche de porrada e ao mesmo tempo de carinho kkkk mas por agora minha reação vai ser um 🥹😓😟😭e gritos internos