O que carregamos molhado
Viver é um eterno estender de coisas no varal, sacudir o excesso, deixar o vento passar e ter paciência com o que ainda não secou.
Viver é um eterno estender de coisas no varal, sacudir o excesso, deixar o vento passar e ter paciência com o que ainda não secou.
Existe um momento em que o corpo entende antes da cabeça. Foi num domingo sem importância, mãos úmidas e pegajosas de sabão em pó, quando pendurei uma blusa e ela colou no meu braço como uma confissão molhada. O tecido encharcado tinha o peso de todas as lágrimas que nunca derramei. Ali, naquele segundo suspenso entre prender o grampo e soltar a blusa, entendi:
A vida é como estender roupa no varal.
Simples assim. Óbvio assim. Cruel assim. Porque o que deveria ser banal me partiu ao meio. As pernas tremeram. O peito apertou. Como se meu corpo soubesse de uma verdade que minha mente ainda fugia.
O gesto que veio das mulheres que me fizeram
Fiquei ali, grampo suspenso no ar, lembrando das mãos da minha avó. Ela nunca falava quando estendia roupa. Só respirava fundo, como quem reza baixinho. Agora entendo: ela não estava apenas secando panos. Estava curando gerações.
Minha mãe faz igual. Em silêncio. Com aquela paciência ferida de quem aprendeu que reclamar não seca mais rápido. Eu a via pela janela da cozinha, na varanda, corpo curvado sobre o cesto, e pensava que ela estava perdendo tempo. Que bobagem. Eu não sabia que ela estava me ensinando a única coisa que importa: como segurar o que se ama sem sufocar.
Cresci acreditando que cuidar era calar. Que amar era não incomodar. Fui criança com alma de roupa úmida — sempre esperando uma secagem que parecia nunca chegar. Aprendi a dobrar toalha antes de aprender a pedir colo. A guardar tudo no peito, como quem guarda roupa úmida no armário: fingindo que está tudo bem, mas sabendo que vai mofar.
Tem dor que demora. Que pede corpo. Que parece que nunca mais vai cheirar a coisa boa.
As feridas que carrego penduradas
Sacudo a blusa e sinto na palma da mão todas as vezes que me sacudiram. As palavras ásperas que deixaram marca, os abraços que nunca vieram, os "você aguenta" ditos como se aguentar fosse virtude. Meu corpo lembra tudo. A pele tem memória mais fiel que o coração.
Tem roupa que a gente lava tantas vezes que ela desbota. Tem amor que a gente torce tanto que ele encolhe. Tem gente que eu amei até não sobrar nada, nem pra mim, nem pra eles. Eu torcia, torcia, torcia, achando que estava curando, que iria secar mais rápido, que assim melhor para todo mundo. Mas estava matando aos poucos.
Lembro do primeiro coração partido. Onze anos, primeiro melhor amigo que virou despedida, porque a mãe dele me achava diferente demais para ficar por perto. Chorei escondido no banheiro, mordi o pulso pra não fazer barulho. Depois fui lavar o rosto, como se pudesse lavar a dor junto. Quantas vezes tentei me lavar por dentro? Quantas vezes achei que bastava esfregar mais forte? Que todas as manchas e sujeiras sairiam.
Hoje sei: algumas manchas não saem. E ainda bem. Porque são elas que me fazem reconhecer minha própria pele no escuro.
Os dias de chuva e a sede de secagem
E tem os dias de chuva. Os dias que não são nossos. Quando acordo e já sei: hoje nada vai secar. Hoje vou ter que carregar tudo molhado mesmo. O luto pela pessoa que eu era. A saudade do corpo que já tive. A raiva de quem me machucou. A vergonha de quem eu machuquei.
Já fui daqueles que seca roupa atrás da geladeira. Sério. Porque não aguentava esperar. Porque achava que dava pra burlar o tempo com gambiarra emocional. A roupa saía com cheiro de coisa abafada, de desespero disfarçado. Eu fingia que tinha dado certo. Mas lá no fundo, no lugar onde o corpo não mente, eu sabia:
A pressa de curar às vezes machuca mais que a própria ferida.
Quantas terapias de intensivas? Quantas taças de vinho acompanhadas de livros autoajuda? Quantos corpos emprestados pra esquecer o que doía? Quantos cursos rápidos pra aprender a me amar em uma tarde? Quantas tentativas de resolver a vida atrás da minha geladeira? A positividade tóxica me deixava exausto. Eu sorria com a boca e chorava com o estômago.
Algumas dores só secam no varal da vida. À vista. Expostas. Com tempo que a gente não tem, mas que o mundo oferece.
O que aprendi pendurado entre o sol e o vento
Viver é pendurar peça por peça. Com cuidado. Com intuição. Com as mãos falando o que a mente ainda não decorou. Nem toda mancha sai. E tá tudo bem. Algumas marcas são cicatrizes do tecido. E da gente. Viver mancha. Amar mancha. Sobreviver mancha fundo.
Tem marca que vira memória. Tem mancha que vira mapa — mostra por onde andei, o que atravessei, quem encontrei pelo caminho. A cicatriz no joelho dos oito anos quando caí de uma árvore. O cheiro de hospital que grudou na blusa no dia que minha vó ficou internada — aquele medo de criança que não sabia se ela ia voltar pra casa, e ela não voltou. Tudo isso me faz quem sou. Tudo isso me reconhece.
Tem coisa que precisa de espaço. Quando a gente aperta demais no varal, nada seca. E na vida é igual. Relacionamento sem ar. Sonho sufocado. Amor que murcha porque não teve onde respirar. Aprendi isso tarde: generosidade é dar espaço. Amor é saber quando soltar.
Escrever é estender roupa: a gente não sabe se vai secar, se vai chover, se alguém vai ler. Mas faz. Porque o gesto importa mais que o resultado. Amar também. A gente não sabe se vai dar certo. Mas ama. Porque o corpo pede. Porque o peito insiste.
O vento que desarruma e ensina
O vento vem. Sempre vem. Às vezes mansinho, como carinho de mãe. Às vezes furacão, derrubando tudo que a gente acabou de arrumar. Já perdi blusa no vento. Já chorei vendo ela voar longe, sabendo que não ia voltar. Mas sem vento, nada move. Nada seca. Nada vive.
O vento é o sim do mundo. A bagunça necessária. A desordem que cura.
Tem vento que traz chuva quando a gente quer sol. Tem vento que seca quando a gente quer que continue molhado. Tem vento que leva embora o que a gente não sabia que precisava perder. E ainda assim, mesmo com medo, aprendo a deixar voar. Porque o que volta, volta transformado. E o que não volta, liberta espaço pra coisa nova.
A intimidade de pendurar a alma
Estender roupa é íntimo. Mais íntimo que sexo, às vezes. Porque é expor o que vestiu sua pele. O que absorveu seu suor, seu cheiro, suas lágrimas disfarçadas. É pendurar pedaços de você no mundo e confiar que vão voltar limpos.
Tenho medo de pendurar minha alma no varal. Vai que alguém vê? Vai que alguém toca nas partes que ainda doem?
Mas pendurar roupa é um pedido de cuidado. É dizer pro mundo: isso aqui precisa de sol. Isso aqui merece secar. E só quem sabe o peso de carregar pano molhado entende o que é viver com silêncio encharcado no peito.
Num mundo de máquina de secar, de pressa, de eficiência, o varal é rebeldia. É afeto em câmera lenta. É confiar na lentidão. É acreditar que existe beleza no que demora, no que pede paciência, no que não pode ser acelerado.
Cuidar da vida é como cuidar de roupa no varal: gesto pequeno com o peso do mundo nas costas.
A contradição que me habita
Às vezes eu queria que nada secasse. Que ficasse tudo ali, molhado, só pra eu sentir que ainda existe. Que ainda pulsa. Que ainda está vivo, mesmo machucado. Cuidar cansa. Às vezes quero largar tudo no chão. Mas sigo. Porque ninguém mais pendura o que eu preciso salvar.
Tem dia que olho pro varal e penso: por que insisto? Por que não deixo tudo apodrecer de uma vez? Seria mais fácil. Seria mais honesto, talvez. Mas aí vem o sol. Vem o vento. Vem o cheiro bom da roupa secando. E lembro: desistir também é escolha. E eu escolho tentar mais uma vez.
Porque mesmo pano molhado tem chance. Mesmo coração partido pode secar ao sol. Mesmo eu posso acordar amanhã diferente.
A sabedoria que mora nos gestos
Depois que pendurei a última peça, fiquei ali. Parado. O corpo doído de tanto se curvar, as mãos marcadas pelos grampos. Olhando. O varal cheio balançando, as mangas dançando como quem agradece. Como quem respira aliviado.
E pensei: talvez viver seja só isso mesmo. Carregar. Lavar. Pendurar. Esperar. Recolher. Recomeçar. Não é épico. Não dá prêmio. Mas sustenta tudo. É o que impede o mundo de desabar.
A vida pede constância. Repetição com ternura. Um "de novo" sem brilho, mas cheio de amor impossível de medir. Cuidar de si. Do outro. Da esperança que ainda pinga no chão.
No fim, somos todos tecidos tentando secar no varal da existência. Entre o sol que nem sempre vem, o vento que às vezes desorganiza, e o que a gente ainda não consegue dizer.
E você, o que carrega molhado?
Talvez seja um amor que ainda sangra. Um sonho amarrotado no fundo do armário. Uma parte sua que ainda fede a abandono, a rejeição, a "você não serve". Talvez seja só você mesmo. Inteiro. Esperando.
A vida não é sobre controle. É sobre cuidado. Sobre saber quando estender, quando recolher, quando só esperar que o tempo faça o que a nossa pressa destrói.
Se você chegou até aqui, é porque também sabe: a sabedoria mora nos gestos banais. Nos rituais sem público. Nos dias comuns que ninguém fotografa. Naquilo que ninguém vê, mas que sustenta tudo que a gente consegue ser.
O vento voltou. Levou uma meia. Deixou um cheiro bom. E eu entendi: o que for leve, talvez precise mesmo voar.
A vida é uma arte de cuidar — do que se ama, do que se perde, do que ainda pinga esperança no chão da cozinha.
Às vezes, cuidar é só isso: não desistir do varal. Não desistir da crença de que as coisas podem secar. Podem cheirar bem de novo.
Obrigado por ter ficado até aqui. Obrigado por não ter desistido do seu varal.
Agora vai. Vai cuidar do que precisa ser cuidado. Vai estender o que precisa ser estendido. Vai confiar no que precisa ser confiado. O sol ainda brilha. O vento ainda sopra. E a gente ainda está aqui.
Abraços, Bordas da Alma
Eu amei esse texto, me vi em cada trecho. Obrigado por compartilhar conosco o seu infinito particular.
Que escrita calorosa, nunca havia pensado na poesia que o simples estender de roupas carrega. Talvez seja isso, a poesia na simplicidade da vida. “A pressa de curar machuca mais do que a própria ferida” isso me atravessou no melhor momento, onde me encontro desesperado pelo processo de cura e renovação. Me vejo ansioso com a ideia de como serei quando tudo for novo, minha face, meu corpo, e quem sabe consiga expor minha alma sem medo do que ainda pinga e talvez, sempre pingará. Me identifico naquele trecho que me lembra um a escrita de Conceição Evaristo onde você diz guardar as roupas molhadas, mesmo sabendo que irão mofar. Pela pressa, o anseio para que processos lentos ocorram com rapidez. Num mundo de lava e seca, apreciar o tempo é um ato poético.
Tudo o que retorna vem diferente, e se não retorna abre espaço para o novo. Vou me lembrar disso.