Uma fábula sobre amor, perda e aquilo que não se segura, nem com as duas asas.
Há amores que a gente aquece no peito como se fossem nossos.
Mas não são.
Alguns só atravessam. Vêm como sombra bonita no chão do quintal. E somem.
Outros ficam. Mesmo quando não deveriam. Mesmo quando são só silêncio e susto.
E há ainda aqueles que a gente tenta cuidar, alimentar, proteger,
mas que carregam nas penas o destino de quem nunca foi terra.
Essa história é sobre isto.
I.
Eram duas.
Sabiam uma da outra. E mesmo assim, se fingiam únicas.
Uma, menor. Penas ruivas, quase cobre, que faiscavam quando o sol raspava no terreiro.
A outra, mais velha, trazia no peito a cor do cinza sobrevivente — aquele tom que só aparece depois da fome, depois da perda, depois do que já foi.
Andavam como espelhos de uma mesma dor. E entre elas, caminhava o último.
O último.
O que sobrara da fúria do céu.
O gavião já viera. Já levara. Já dilacerara.
Não uma vez. Não duas.
Mas como quem volta pra buscar o que esqueceu.
E cada retorno era uma oferenda arrancada.
O terreiro ficara vazio de filhos. Só restava ele.
Pequeno demais pra fazer sombra.
Grande demais pra não ser percebido.
As galinhas não sabiam mais a quem ele pertencia.
Ou talvez soubessem, mas mesmo assim preferissem calar.
Carregavam-no de um lado a outro.
Como um segredo quente. Uma fofoca suculenta.
Como uma pergunta sem resposta.
Como quem oferece, mas também tenta esconder.
Ou talvez fosse ele quem fazia isso com elas.
Grande demais pra não ser percebido.
II.
O galo se calou.
Não porque não houvesse mais dia. Nem nascer do sol.
Mas porque o dia, ali, doía.
O terreiro ficou suspenso num tipo de ausência que não se nomeia.
Ausência que não é de coisa. É de presença.
É o tipo de silêncio que estala no osso.
O pintinho…
Não ciscava.
Não piava.
Observava.
Com olhos de antes.
Antes do ovo.
Antes da espera.
Antes da terra.
Não comia como os outros.
Não se enfiava sob as asas alheias.
Dormia no alto. Sozinho. Sem as mães.
Num galho seco onde nem as corujas ousavam empoleirar esperança.
Seu peito arfava devagar.
As penas vinham escuras. Tortas. Afiadas.
Não eram negras. Eram metálicas.
Tinham o brilho frio do que corta.
As galinhas fingiam não ver. Eram galinhas cegas do amor.
Mas viam.
E sabiam.
Só que não se diz o que não se entende.
E muito menos aquilo que se ama, mas reconhece como estranho.
III.
Vieram os dias.
Vieram as semanas.
Vieram os presságios que não têm palavra, mas que o corpo sente.
O vento mudou.
Aquele vento que não entra pela porta.
Mas que abre tudo por dentro. Gelado e áspero, arrepiava e eriçava as penas.
Um som riscou o céu.
Não era o galo.
Não era corvo.
Era outra coisa.
Mais funda. Mais certa. Maior.
O gavião pousou.
Devagar.
Como quem sabe que já não precisa lutar por nada.
As galinhas não gritaram.
Não correram.
Ficaram.
Como quem já entendeu que algumas coisas não se impede.
O pintinho…
Não fugiu.
Não encolheu.
Não se fez pequeno.
Olhou.
E no olhar, havia uma memória que não cabia em nenhum galinheiro do mundo.
Havia voo ali.
Mesmo sem ter partido.
Ele abriu as asas.
Mas não eram asas.
Eram lâminas.
Eram não pertencimento.
Eram recusa da terra. Era seu não ao chão.
Não voou.
Foi levado.
Pelo bico.
Pelas garras.
Pela vocação da dor.
O gavião não veio buscar.
Veio lembrar.
Que certas naturezas, por mais amadas, por mais aquecidas,
não pertencem ao chão.
IV.
As penas ficaram.
O cheiro também.
E o que é pior: o amor.
Ficaram olhando o vazio.
E o vazio olhou de volta.
Não havia erro na forma como amaram.
Mas o amor não bastou.
Não serviu.
Não protegeu.
Não segurou.
Porque há coisas que,
por mais que se alimente,
por mais que se abrace,
por mais que se faça reza e vigília,
nascem de outro ventre.
De outra fome.
De outro céu.
E o que sobra é isso:
o terreiro.
a ausência.
as penas espalhadas.
e esse buraco no peito onde antes dormia um corpo estranho.
Nota do autor
Vi duas galinhas cuidando de um único pintinho.
Elas andavam lado a lado, como se dividissem um segredo.
Aquela cena ficou dentro de mim por dias.
E se nem fosse um pintinho?
E se o que cuidamos com mais ternura for, na verdade, o que nunca vai retribuir?
Fiquei pensando em tudo o que a gente ama sem entender.
Em tudo que a gente protege sem saber se vale a pena.
Naquilo que nasce estranho, e a gente acolhe mesmo assim.
Esse conto nasceu do espanto.
Do amor que tenta, falha e segue tentando.
E da certeza de que o amor mais bonito…
é aquele que não desiste, mesmo quando já entendeu que vai perder.
Obrigado por chegar até aqui comigo, Bordas da Alma.
meu Deus que coisa mais linda, que pureza sem tamanho! :( To sem palavras mas sentindo muito aqui
belo texto