Tem uma linha fina de concreto no meio da avenida. Cinza. Quente. Esfarelando nas beiradas como pele morta. É onde eu tô. Com os dois pés cravados como se eu tivesse raízes. Mas não tenho. Sou toda instável. Sou água derramada tentando virar gelo.
Meu joelho esquerdo chacoalha. Não de frio. De medo. De vergonha. De cansaço acumulado nos ossos feito ferrugem. É um tremor que começa pequeno, mas vai ganhando o corpo inteiro, como se cada célula tivesse um segredo que não quer mais guardar. A sola do meu pé queima no asfalto que derrete. A tira do chinelo tá me rasgando o dedo do meio, cortando até sangrar. Minha calcinha colou na pele feito band-aid molhado. Suor escorre entre as coxas. Ansiedade vira catarro na garganta. A pele do meu rosto estica, repuxa, vai rasgar. A testa, molhada de sal. O buço, úmido e nojento. As costas, vertendo como se eu fosse uma torneira quebrada.
Alguém grita: "A faixa é ali na frente!"
Eu não olho. Não reajo. A única reação possível é ficar. Presa. Como quem respira com culpa. Como bicho ferido que não sabe mais andar.
Tem um gosto metálico na minha boca. Ferro. Sangue. Medo mastigado. Minha língua pesa feito chumbo. Minha bexiga ameaça explodir. Meus ombros parecem feitos de cimento molhado, pesado, que vai endurecer e me deixar aqui pra sempre. E os olhos… Ah, os olhos querem descolar da cara, sair correndo, se esconder embaixo de algum carro e fingir que não me conhecem.
A mulher do carro me olha com pena. Nojo também. O homem da bicicleta com raiva pura. A velhinha no ponto de ônibus balança a cabeça, tsk tsk tsk. Todo mundo tem uma certeza sobre mim. Ninguém me conhece. Mas me julgam como se fossem meus tios. Como se soubessem atravessar. Como se nunca tivessem parado no meio de nada. Como se seus corpos obedecessem. Como se a vida fosse fácil pra eles. Como se.
Eu queria falar. Queria dizer: "me dá a mão?" Queria gritar: "me deixa aqui um pouco, só mais um pouco, eu juro que tento depois." Mas a garganta tá seca. Tem um osso atravessado no meu pescoço. E minha voz se escondeu atrás dele.
Um carro passa tão perto que o vento bate na minha barriga. Quente. Fedendo a óleo queimado. E eu sinto. Sinto tudo. Sinto até a calcificação do meu quadril rangendo, o fio da meia que enrolou na canela cortando a circulação, o sutiã apertando a costela até não conseguir respirar direito, os pentelhos colados de suor formando uma pasta nojenta entre as pernas.
Sinto um soluço engasgado subindo. Sinto uma vontade absurda de me deitar nesse concreto estreito e dizer "pronto, acabou, venci, não precisei atravessar". Ou me jogar. Deixar um carro me levar. Seria mais fácil que escolher pra onde ir.
Mas eu fico em pé. Torta. Trêmula. Feita uma escultura defeituosa. Uma coisa que sobrou no meio da pressa.
Lá na frente, as pessoas atravessam. Na faixa. Seguras. Certas. Inquestionáveis. Elas sabem atravessar. Sabem onde pisar. Sabem quando parar e quando ir. Sabem que lado é o certo. Que filhas da puta sortudas. Que merdas funcionais. Que inveja. Que raiva. Que vontade de gritar: vocês também já pararam no meio? Vocês também já travaram? Ou vocês nasceram sabendo?
Eu continuo aqui. Meio atravessada. Meio não. Com o coração no meio da garganta engasgando. Com a alma presa entre os tornozelos como algema.
Eu continuo. Na mesma linha. No mesmo meio.
E então.
E então eu.
E você? Qual é o seu "meio da avenida"? Esse lugar onde você fica presa, entre o que foi e o que ainda não consegue ser?
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Quando eu acho que você não é capaz de me surpreender mais, você surpreende florescendo de forma iluminada. O mundo tem que te conhecer!
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